Primeiro contato com a Sayuri
- Pele Expressa
- 24 de jun. de 2019
- 16 min de leitura
Atualizado: 30 de jun. de 2019
PE: Como o machismo interfere no movimento e como essas atitudes afetam sua vida profissional?
Sayuri: O cara sempre desmerecia o trampo do outro. Então também tem uma disputa entre os homens. Tem aquela questão do macho alfa também dentro do ramo dos tatuadores. Os caras vão falar que não e não sei o que, mas só se eles forem amigos, muito amigos, para não criar atrito. Mas, é aquele rolê, você mexe no seu e eu mexo no meu e assim a gente vai vivendo. Se eu não sou manjador disso eu vou mandar para você que manja, mas se chegar alguém e você sabe que eu manjo daquilo, você manda para mim. É mais ou menos assim que funciona. Alguns trabalhos que vocês viram também, não sei, pelos nomes que você me falou eu não ouvi, o da Jordana. Ela também tatua aqui, ela trabalha muito com aquarela. Eu conheci ela através de um menino do meu curso, que me mostrou uma tattoo que fez com ela e eu fui pesquisar no Instagram, porque eu sigo outros tatuadores e conheci a Jordana. Mas nunca entrei em contato, nada. E depois fiquei sabendo por um conhecido que é amigo dela, um negócio assim, não sei, e ele falou que ela é uma pessoa maravilhosa. Mas eu não a conheço pessoalmente. Então, tem outras mulheres também, a Jordana que trabalha com aquarela e eu vi que ela faz umas outras sem ser aquarela. E, no mais assim, dessa questão do ser machista, ser uma área machista, eu creio que é. Até porque quando eu fui para fazer um curso, não é bem um curso. Mas é só porque quando eu fico parada muito tempo, você precisa estar fazendo uma reciclagem, se atualizando, isso em qualquer área. Aí eu fui atrás do cara que faz as minhas tattoos, meu tatuador, conversei com ele e até então sempre, há uns anos já. Eu tô nessa dele fazer e ele mudou de parceria, e aí a parceria é com outros tatuadores amigos dele, aonde eu estou fazendo umas tattoos já tem um tempinho. E, de repente, eu vi o cara do lado de lá, porque tem o lado dele e o lado do cara, e ele ensinando uma menina. Aí eu falei “ou assim você me quebra né. Como assim cara, ele ta ensinando, e eu nem preciso, eu só preciso de uma reciclagem.” Aí ele falou que depois ia conversar com ele, porque nem sabia disso. E a mina era toda padrão, novinha, devia ter uns 17 ou 18 anos, e a mãe falando que pagava porque ela quer ser. E o cara lá em cima, tipo dementador na menina: “Não, pega assim.” Sabe, aí eu até zoei o cara, falando que ele tava babando ovo. E aí, meu tatuador começou a rir, porque era verídico né. Aí ele falou assim que não é porque chegou uma mina bonitinha aqui não, que ele conversou, fez um contrato com ela e aí ela vê e vai achar que eu estou de tiragem com ela. E aí eu falei pois é, e eles iam conversar e ele falou que ia me dar um feedback, mas até hoje. Então como eu não vou me tatuar, porque financeiramente está crítico, ele não me mandou nada. Até pensei em um dia mandar sabe, mas falei “ah, deixa o cara né.”O cara hoje, a eletro ink, que é uma grande empresa do ramo de tatuagem, ela patrocina ele. Os caras manjam pra caralho, o tatuador que faz minhas tattoos também manja pra caralho, tanto é que eu já estou com ele tem tempo. Eu fico bem triste em saber que a gente chega naquela música da Rita Lee ou é da Zélia Duncan, ou das duas, que a gente para e fala “p****, nem toda brasileira é peito e bunda.” Então, tipo é esse rolê. Eu fico muito triste, é isso que me desanima também na área. Porque lá em Ribeirão eu via muito disso, chegou aqui não vejo o cara que fez o trato comigo, mas vejo os parceiros dele fazendo. Então eu fico meio chateada com essas coisas, aí eu vou seguindo na minha, faço quando dá, quando alguém me pede.
PE: Nesse sentido, você já viu homens recusando fazer tatuagem com uma mulher?
Sayuri: Assim, às vezes o homem não quer. Talvez se ela foge desse padrão de bonitinha e tudo mais, eles podem achar que ela é incompetente, por ser mulher. Não sei se foi um recusar. Vou contar um caso que aconteceu com uma amiga minha. Ela ia abrir um estúdio comigo lá em Ribeirão. Ela também não é padrão. E um dia, os amigos do marido dela que estavam também começando e hoje estão deslanchando no interior de São Paulo, e um deles queria fazer uma tattoo e o marido dela falou “tem as duas”. Aí ele “não, mas não sei.” O marido perguntou o que ele queria fazer, afirmando que nós fazíamos. E ele mostrou, porque esse meu amigo, marido dela, tem umas tattoo que eu fiz, tem as que a mulher dele fez. Então, ele falou “ou, olha aqui e faz aí o que você quiser.” E o amigo dele falou “Ah, eu quero fazer, só que eu quero fazer em alguém.” Sabe, ele correu. Acabou que o meu amigo falou para a gente deixar ele fazer a tattoo, e eu e ela sacamos o que era, e não falamos nada. Deixamos rolar e ela deixou ele fazer. E eu falei que não ia dar minha perna e nem meu braço para ele fazer uma tattoo em mim. Eu não quis ser cobaia dele. Eu já fui cobaia, dessa minha amiga inclusive, então não é que eu não tenha coragem, porque ela já fez em mim e eu cobri, mas né, porque não ficou legal. Mas, como eu era cobaia, eu sabia muito bem o que eu estava passando, o que ia acontecer comigo. Mas, por ele, o tamanho da tattoo e o que ele quer fazer, não é assim, é o que eu quero fazer. Não é ele que vai escolher o que ele vai tatuar em mim ou não. Aí ele falou “ah, é porque eu não sou bom”. E eu falei que ele estava começando, então ele tinha que tentar para saber se era bom. Perguntei se já tinha tentado e ele afirmou que não. Então, não tinha como ele saber se era bom. Ele falou que queria fazer uma caveira e tal. Eu falei que não ia fazer em mim, ele pegou e foi fazer nela, ela deu a perna. Ela tinha uma tattoo minha, porque ela foi minha cobaia também, eu tinha começado e até hoje está para reformar. Foi uma das primeiras tattoos que eu fiz na minha vida. E aí, ela deu a perna, a minha amiga, ela é branca, e aí ele foi fazer uma coisa monstruosa, uma caveira com umas velas. Minha amiga não deixou ele terminar, ficou horrível, eu tive que dar uma reformada nela. Ela se arrepende até hoje, fala que se pudesse arrancava o pedaço. Mas, ele impôs que alguém fizesse aquilo, porque ele chegou com a ideia de alguém fazer, só que alguém que não fosse eu ou ela. Foi mais ou menos assim. Então, não sei se entra nessa questão de se recusar, até porque a gente estava lá no inicinho, nos primórdios né. Então, eu não sei.
PE: Quais dificuldades você já enfrentou para se inserir no mercado de trabalho?
Sayuri: Para montar sozinha. Cara, não vou mentir, eu tive quase R$5.000,00 em conta, e eu gastei tudo para fazer um estúdio. E, chegou na hora, minha família também não ajudou. Minha mãe deu a louca, me levou para comprar o que precisava, os pisos e tudo. Já tinha um lugar lá na minha casa para fazer. Aí minha mãe deu a louca, por causa de família, parente dando pitaco, um monte de outras coisas. Falou “não, vai mexer com isso não”, umas conversas fiadas lá, e acabou que eu perdi. Perdi R$5.000,00 assim, brincando. Hoje o lugar onde era pra ser meu estúdio, lá em Ribeirão, junto até com minha amiga, virou a casa do meu pai. Então há males que vem para o bem, mas o piso tá tudo parado, perdi argamassa, tinta… Eu perdi muita coisa, então foi assim… cinco mil jogado no lixo, a única coisa que eu não joguei no lixo foi minha máquina.
PE: Você acredita que as mulheres tatuadas são fetichizadas e usadas como objeto?
Sayuri: A exótica! Já me chamaram uma vez de “swag”. Uma vez eu tava numa boate, cara (aquilo foi um lixo), eu tava mó de boa, eu tava de shorts, tava com um body cheio de caveiras, tava muito louca, tava na minha, quietinha, não tava bebendo, tava nada, tava normal. Tinha umas amigas minhas, tudo muito louca, porque era dia de open lá, mas eu não bebi nada. Aí chegou uns caras, aquele típico brucutu, puxando o braço, cochichando na orelha, aí eu “ai cara, pelo amor de Deus, nem de homem eu gosto”, falei desse jeito para ele, eu tava nervosa já, que era um empurra-empurra. “Ai, eu quero ficar com sua amiga”. Falei pra ele “vai lá falar com ela, eu não sou pombo-correio, cara velho, falei vai lá e fala com ela”. Aí minha amiga não quis ficar com ele e ele veio com esse papo, “nossa, eu tô vendo que você tem um estilo bem diferente”, eu falei “ah, você usou outra palavra, né, ‘diferente’”, aí ele: “você tem um estilo swag”, eu perguntei o que que é isso. eu não sabia o que era. Ele falou assim “pesquisa aí no seu telefone, joga na internet”, eu falei , “rapaz, eu tô dentro de uma boate, dançando, você vem encher meu saco, quer que eu pesquise na internet o que é swag?”. Ele pegou e falou “quando chegar em casa pesquisa”, e eu falei “tá”. Aí ele falou “ah, porque as suas amigas não tem a sua beleza, elas são tudo feia”, falei “gozado, tava louquinho querendo beijar minha amiga, só porque ela deu um pé na tua bunda, agora você quer ficar comigo?”. “Ah, mas você, assim, seu estilo”, falei “ah, não cara, por favor, vou repetir: não gosto de homem” e eu gosto, né, mas falei “ai, sai daqui”, e ele pegou e foi embora. Aí eu cheguei em casa e olhei o que é ‘swag’, uma amiga minha tinha falado que era “estilo Rihanna”. Eu olhei lá e falei “cara, só porque eu tava com a roupa assim, assim, assado, nem ando assim todo dia”. Mas tem esses rolê de fetiche, de ser ‘exótica’ e ‘diferente’. Que nem quando às vezes você tá no Tinder, e o cara coloca lá “gosto de mulher com tatuagem”. Nunca vi falar que é por causa de fetiche, mano, tipo, pega e faz em você e fica olhando, entendeu? Sei lá, compra uma revista de tattoo, porque tem lá as tatuagens e fica olhando.
PE: Quanto aos estigmas aplicados à estética da tatuagem em si, vê-la como algo ruim é pior por ser mulher, a relação que se tem com o mercado de trabalho. Você também tem outra profissão, então talvez tenha sofrido algum tipo de preconceito. Bom, conte para a gente.
Sayuri: Claro! Eu perdi uma prova por causa disso. Eu não ganhei certificação por conta disso: eu tenho certeza! Eles não vão falar isso no resultado. Mas depois me falaram (pessoas que trabalharam na área) que pode ter sido por isso. Eu quero ser intérprete, ou pelo menos queria. Foi muito difícil fazer essa prova. Minha chefe me deu grana para ir fazer a prova que era em outra cidade: Uberaba. Fui, cheguei lá, bem cedinho, fiz o rolê todo. Meu cabelo estava vermelho, meio rosa, com uma franjona enorme. Mas eu estava de blusa preta, tirei os piercings, alargadores e fui. Estava de blusa de manga, que tampava as tatuagens que tenho no braço. Fiz a prova, tudo, vim embora. Cheguei aqui à noite. Fui bem. Todo mundo perguntando como fui e eu falava: "fui bem, não sei se passo, mas fui bem". Passou o tempo, chegou o resultado: "inapto". Cara, eu fiquei muito p***! Eu dou aula de Libras, aqui, na Moradia. Faço, às vezes, papel de intérprete para monitor poder dar monitoria para aluno surdo. Converso com surdo, converso com meus professores que são surdos. Converso com aluno surdo. Faço um monte de coisas. E apresento o que precisar. Teve um evento que o CEPAE (Centro de Ensino, Pesquisa, Extensão e Atendimento em Educação) fez, não tinha intérprete, tive que oralizar e interpretar, coisa que não se faz. Isso porque uma colega minha que é surda foi ver. Então, tipo, eu tive que me virar. Cara, se eu não sou apta, o que eu estou fazendo da minha vida. Converso com os intérpretes, às vezes, pois ninguém sabe tudo, nem eles. Tem uma troca, tem um contato, onde tem uma experiência. É vasto. Eu não quero ser a f*****. Depois que recebi o resultado, fiquei bem chateada, pois um "apto" com algumas restrições: belê. Estou formando para que? Já dei aula no Sesec, de Libras. Fiquei meio assim, mas larguei mão. Daí me falaram: "não faz mais tatuagem. Não faz tatuagem em braço...". Ih, já era! Já tenho. "Não faz mais, te prejudica. Tudo te prejudica pois eles perdem o foco." Tive que arrancar o negócio da minha unha. Paguei caríssimo. Tirei meus anéis, tirei tudo. Porque não pode, real, não pode. Mas eu estava já sem nada. Somente o cabelo. "Ah, mas tira atenção deles!" Real, tira a atenção? Tira. Mas não ganhar por causa disso... Daí várias pessoas me falaram que eu não devo ter conseguido por causa disso: porque eu chamo atenção. Isso porque eu nem estava de bermuda, imagina se estivesse de bermuda... Iria estar mais que "inapto" lá! Aqui, a galera fala que é até mais fácil. Que aqui o povo não tem tanto preconceito. Mais ou menos. É menos que Ribeirão Preto. Ribeirão Preto tem mais. Eu trabalhei em escola, fiz estágio na área da Pedagogia no primeiro semestre e trabalhei também como auxiliar de sala de uma professora, mas fazia o papel de professora. E meu cabelo era azul, bem maior. Eu já tinha algumas tattoos. No braço e no tornozelo. Dava para ir de calça, mas as do braço iam ver. Piercing eu tinha na boca, então dava para esconder. Mas era aquele rolê: eu tinha que ir toda coberta. Tinha que pôr uma burca. Na particular, os pais não olhavam com um olho legal. Então às vezes ela falava "ah, você tem que arrancar esse brinco seu, muito grande. A criança vai puxar." A criança vai puxar se for algo que brilha. Ele vai chamar atenção, ok. "Mas ah, não pode, ela vai assustar". Assustar com o buraco de uma orelha? Eu ficava muito emputecida. Eu larguei a Pedagogia não é por causa de criança não. Eu larguei a Pedagogia por causa de adulto. E por causa desses rolês, quebrar remédio e só por conta do meu estilo, achar que fui eu. "Ah, você tem cara de quem depreda as coisas!" Tipo, me chama de anarquista, "sua punk, fedida", esses trem que eles têm mania de chamar a gente. Tem nada a ver, entendeu? E aí eu fiquei muito chateada. Uma vez eu fui arrumar um estágio, tinham várias pessoas. Eu vou o que? Arrumada, com roupa normal... De pessoas "normais", né? Mas roupa é roupa! Eu fui toda arrumada, socialzinha, bonitinha , "sapatinho bonitinho", né?" Fiz secretariado técnico, fiz administração técnico, ilustração digital. Fui fazer entrevista para uma empresa e chegou lá, ela perguntou para mim o que eu fazia da vida. Eu falei que já era tecnóloga em algumas áreas, tinha algumas experiências. Daí ela "ah, tem uma coisa" e eu respondi "o que?". Então ela respondeu que o meu cabelo, azul na época, precisava ser pintado se não eu não iria arrumar emprego. "Se fosse na minha empresa, para contratação já, eu não te contrataria." Eu pedi uma justificativa. "Seu cabelo, eu já falei. Quem tem cabelo azul? Vai trabalhar de cabelo azul? Vai atender um empresário com esse cabelo?" Daí, eu sou meio "doida". Eu estava formada, com meus 18 aninhos e falei: "Escuta aqui, primeiro que não é você quem vai me contratar. Está fazendo apenas trabalho intermediário. Segundo: quem vai fazer o trabalho é quem? Euzinha! Não é meu cabelo. E terceiro, dá uma olhada no meu currículo e vê o que você está me exigindo. Eu acho que o que eu paguei pra deixar meu cabelo desse jeito, não é o tanto que você está querendo me pagar com essa bolsa-porcaria de 600 reais." Peguei, levantei e sai. Cheguei no carro, minha mãe me perguntou como é que eu tinha sido, o que tinha acontecido, daí eu contei e ela queria me agredir. Ela achou que era o cúmulo eu ter falado aquilo para a mulher. Cara, quem fala o que quer, ouve o que não quer. Ainda mais com um negócio desse de preconceito. Tinha saído algo na Lei que dizia que tatuagem, cabelo, não era de caráter eliminatório. Então, na época, para um estágio, eu falei: "tem dó!". Outro caso, diferente: eu estudei em colégio adventista. Sai. Nessa época eu já estava com cabelo colorido. Terminei, entrei pro curso, já pintei cabelo, tatuei, fiz tudo o que tinha que fazer. Cheguei um dia lá para fazer um trabalho da Pedagogia. Precisava ir na Biblioteca. O que que aconteceu? Eu não podia entrar sem acompanhamento. Eu era ex-aluna, mas não podia entrar sem acompanhamento. Daí a pessoa que eu conhecia, que já foi minha professora, minha coordenadora, falou assim: "você não vai poder entrar". Perguntei o porquê. Ela disse que ia tentar encontrar alguém para entrar comigo. "Cê tá de gozação com a minha cara?" Ela respondeu: "Não, é que você sabe... A tatuagem, o cabelo, o estilo de roupa. Os alunos vão estranhar. O inspetor mudou, os professores mudaram, os alunos também. Só ficou eu e fulano, daí não vai ser legal." Eu fui acompanhada, gente. Até a biblioteca. E para sair de lá, precisei ser acompanhada de novo, tudo para poder sair sem ser julgada. Eu fiquei trancada. Ela trancou a biblioteca para eu ficar com ela fazendo o trabalho. Encontrei com ela depois de um tempo que disse que "esse cabelo colorido, essas tatuagens... Você tá muito louca!" e respondi que não estava louca não, estava normal. Perguntou o que eu estava fazendo e eu disse que cursando Letras na UFU. "Ah, professora, legal... Mas tem um problema: lá na escola você não vai poder dar aula, igual a muitos alunos que formaram". "Fica tranquila, que lá eu não pretendo dar aula não. Obrigada!"
PE: A outra pergunta é como conseguir espaço dentro de um ambiente predominantemente masculino e como é ter que provar que realmente é boa para ganhar respeito.
Sayuri: Você tem que fazer o que o cara quer. Tem que deixar o cara cagar na sua cabeça. Ele te humilhar mesmo. Falar "ah, isso aí não tá legal não. Que isso aí?". Menosprezar. Porque às vezes está uma coisa moderada para quem está começando e o cara não tem paciência: eu já vi isso dentro de estúdio. Eu sou meio rata de estúdio. Às vezes eu ficava lá só para ficar "curiando, vendo o povo e os caras falam mesmo, rasgam o verbo. Só que algumas vezes tem uns caras que não são assim. Teve um que olhou minha tattoo e perguntou quem tinha feito. Quando eu disse que fui eu, ele falou "caramba! Foi você? Você fez em você?" e eu respondi que sim. "Já que não tenho quem fazer, eu mesma faço em mim." Ele disse que eu tinha que desenvolver outros rolês, mas que já estava ótimo, que alguns caras que ele conhecia não faziam nem isso. Então, tem cara que é maleável, tem cara que quer te ajudar. Que nem ele fala pra mim: ele não vê outra pessoa, seja mulher ou homem, como uma ameaça. Pois quem é bom, é bom. Não precisa provar. Eu tenho algumas revistas de tatuagem, uma só com tatuadoras, mas é aquele esquema: eles colocam elas peladas, mostrando as tatuagens, tampando os peitos, de calcinha ou de shortinho ou de qualquer coisa que seja. Só não manda ela abrir as pernas porque vai dar muito na cara. Mas de resto... "Precisa sair numa revista para conseguir respeito." Os caras não têm respeito nem com os outros caras, quem dirá com as mulheres! Eles não estão nem aí. Têm as marias-agulhas. E também caras que se aproximam de mulheres só para ganhar tattoo. Já aconteceu comigo. Tem cara que manja das técnicas e sabe te respeitar, outro que nem sabe pegar na agulha e quer me "ensinar".
PE: Quais são os termos e técnicas mais usadas e quais são os estereótipos sobre o que é “tatuagem de mulher”?
Sayuri: Florzinha! Borboletinha! Coisinhas meigas… não, cara, coisinha meiga meu c*, coisinhas meigas… Eu odeio flor. Odeio. Eu tenho essa sakura porque eu cobri, né, eu fui lá e fiz essa sakura porque era o que cabia. Mas os cara tem mania de querer cobrir com rosa, tudo que eles querem fazer um cover up, que é a cobertura, eles querem pôr uma rosa: “Ah, vamos jogar uma rosa aqui, tacar um vermelho com preto”, eu falo não, cara, não quero rosa. Que é aquela questão de não respeitar aquilo que você quer, porque “ah, mas isso aqui não combina muito com mulher”. Se eu quisesse fazer um pênis aqui, eu fazia um pênis aqui, é gosto meu! Se eu quisesse fazer um sovaco, eu fazia um sovaco. Já vi gente fazer um limão, problema da pessoa que fez um limão, é gosto dela, quem vai morrer e ficar com aquilo lá pra sempre vai ser ela. Porque impor, “ vamos fazer um raminho assim, com umas borboletinhas, uns passarinhos…”. Teve aquele boom dos passarinhos, né? As gaivotinhas. Agora é resiliência, gratidão, fé, fazer uma cruzinha, infinito, papai e mamãe… não que não seja legal. Que nem eu falo no meu trabalho, tudo tem um caráter ideológico. Tem um gênero discursivo atrás daquela tatuagem, daquela modificação corporal, daquele piercing. Às vezes as pessoas fazem por modismo? Fazem. Tem pessoas que fazem sem saber ou porque querem, sem ter um ideal? Tem, mas no fundinho às vezes tem sim uma resposta, ela que não focou naquilo . E tem quem faça com significado. Todas as minhas tatuagens, sem exceção, têm significado. Já chegou cara a falar assim “mano, cê foi fazer uma tattoo colorida, cobrir com colorido, sua pele não pega”, deu vontade de mandar ele tomar no c*, eu simplesmente virei e saí. Até meu namorado da época falou “como que o cara te fala isso?”, e eu falei “pois é, perdendo cliente”. Ele não saber tatuar na pele negra é uma coisa, ele ser grosso e estúpido, é outra coisa. E ele não saber falar que não iria ficar legal, que podia trabalhar uma outra coisa no tom da minha pele, é outros quinhentos. Hoje já tem técnicas, já tem várias outras coisas aí que falam sobre a questão de tatuar pele negra, desmistificando esse negócio de “ah, ficar feio colorido”, com o tempo, todo colorido fica feio, com o tempo! Mas fazer um trem que eu não quero… já ouvi também “vamos fazer uma carpa”. Ele falou que só fazia se fosse uma carpa, virei as costas e fui embora, não tem argumento com um cara desses. Esse negócio de impor uma tatto, cara, isso é horrível! Tipo, uma carpa é feminino? Se você quiser fazer uma carpa, é uma coisa, se eu não quiser, é outra. Eu não acho que combinava comigo. Uma vez, com um tatuador daqui, eu queria fazer uma geisha. Fui lá, dei a perna, ele tirou o molde, mostrei o desenho, falei o que eu queria que modificasse, o que eu queria na geisha. Era um old-school. “Vou te mandar hoje à noite”, beleza, amanhã a gente faz. Nada. Perguntei, pedi para mandar de novo se já tivesse mandado. Aí ele demorou a responder, era quase meia-noite, ele me mandou um esboço. Trem c*****. Fiquei nervosa. Falei “eu não quero assim não, moço, eu te falei, eu quero assim, assim, assado, você demorou tudo isso para fazer isso, você fez isso agora, né?”. “Ah não, eu quero fazer um trem assim, olha aqui” e ele mandava a foto. Eu não quero assim, eu quero assado. Eu vou te pagar, cara, e não é barato, “ah, mas vai ficar mais bonito na sua perna”, não, não fica, quem quer é eu, tem que fazer do jeito que eu quero. Daí eu bloqueei ele. Quando eu fui fazer tattoo lá com outro cara, eu falava “olha, eu quero assim, tem como?”, ele “tem, tem como, tem como”. Aí às vezes tinha uma cor ou uma coisa assim, “você quer essa cor?”, eu falava assim “ah, não sei, o que você acha?”. Uma coisa é a cliente pedir opinião, também. Aí ele “ah, ó, não vai ficar legal. Vamos trabalhar uns tons assim, e fazer um sombreado, fazer um rastelado…”, aí falei assim “opa, vai ficar bom, hein”. Até que peguei confiança, quando ele fala “vou fazer um trem aí”, pode fazer. Ele não questiona. Fui fazer uma outra tattoo lá, era um símbolo. Ele virou pra mim e falou assim “você quer tatuar isso? O que é isso?”. Eu falei assim, “você quer mesmo saber?”, e ele falou “eu quero, uai, vou tatuar”. Ele sabe todo o significado da minha tattoo. Peguei e falei assim “tá bom”. Fui lá no ouvido dele e falei o que era o símbolo. Ele olhou pra minha cara e perguntou “você quer mesmo tatuar isso?”, falei “quero” e ele falou “tá bom”. Foi lá e fez. O que que custa? Mas os caras são babacas, poucos caras nesse ramo são bacana, poucos.

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